'Carvão orgânico' do açaí sequestra carbono e fixa nutrientes no solo

Por Redação em 21/04/2024 às 10:10:27

Há séculos, os povos ameríndios descobriram que, se queimassem folhagens, caroços de frutas e outros resíduos, o solo ficava mais fértil. Essa fertilidade assemelhava-se à da chamada terra preta de índio – solo escuro, rico em nutrientes e em matéria orgânica, comum na região amazônica.

Reproduzir a composição desse solo tem sido o pano de fundo do trabalho de uma rede de pesquisadores e agrônomos do Norte do país, que têm feitos testes com diferentes tipos de adubos. Com esses esforços, os cientistas querem assegurar a oferta de nutrientes às plantas similar à da terra preta – e, ao mesmo tempo, reduzir os gastos dos produtores com insumos.

Foi aí que o caroço do açaí surgiu como uma solução. Antes considerado apenas um resíduo – e, em muitos casos, também um passivo ambiental –, o material atraiu a atenção dos pesquisadores por ser um elemento poroso, rico em biomassa, com capacidade de reduzir em 50% ou mais o uso de fertilizantes químicos em lavouras de hortaliças e cereais. O caroço dá origem a uma espécie de carvão orgânico, o "biochar", um termo que, em sua versão original, nasceu da união das palavras em inglês "biomass" (biomassa) e "charcoal" (carvão).

Produto nativo, o biochar de açaí tem atraído produtores rurais por ser um condicionador de solo capaz de sequestrar gases de efeito estufa, melhorar a absorção de nutrientes do pacote NPK (nitrogênio, fosfato e potássio) e ajudar na recuperação de pastagens amazônicas.

O solo da Amazônia se degrada com muita rapidez. O biochar ajuda a recuperá-lo. Ele é uma espécie de ímã, que faz o fertilizante 'grudar' e ser liberado lentamente
— Wesley Resplande, produtor rural fundador da Amazonfert


"O solo da Amazônia se degrada com muita rapidez, e o biochar ajuda a recuperá-lo", afirma o agrônomo e produtor Wesley Resplande, que mora em Macapá. Segundo ele, devido à lixiviação (processo natural em que a água retira nutrientes do solo), a perda de fertilizantes químicos pode chegar a 90% na região. "O biochar reduz esse efeito", complementa.

Resplande conta que sempre conviveu com o acúmulo de caroço do açaí, já que 80% da fruta vira resíduo. O problema virou alternativa de renda durante a pandemia, quando o agrônomo começou a pesquisar a fim de saber se seria possível fazer algum dinheiro com as montanhas de resíduos do fruto.

Em 2020, após o lançamento de um programa de inovação na Amazônia, o produtor deixou o plantio de hortaliças e pimentas para empreender no ramo das biomassas. Na época, Resplande inscreveu sua startup – ainda em fase de concepção naquele momento –, que transformaria resíduos em fertilizante biológico. Assim nasceu a Amazonfert.

Com a empresa em funcionamento, o empreendedor descobriu que o biochar de açaí contribui para aumentar o volume de microrganismos no solo. "Ele é uma espécie de ímã, que, ao ser aplicado, faz o fertilizante "grudar" e ser liberado lentamente e por mais tempo no solo", conta.

Para o material orgânico ficar com textura e granulação ideais, é necessário expô-lo a altas temperaturas, em um processo de combustão conhecido como pirólise. Os caroços são lançados em uma caldeira quente, mas não podem queimar totalmente. O ponto certo é quando o composto aparenta ser um carvão (não por acaso, biocarvão é sinônimo de biochar).

Nos últimos anos, a Amazonfert participou de programas de aceleração de startups e recebeu um financiamento de R$ 1,2 milhão para desenvolver novas rotas produtivas do bioinsumo. "Somos a primeira biofábrica de origem brasileira a trabalhar com biochar. Nosso foco inicial é o açaí, mas, no futuro, queremos transformar todos os resíduos amazônicos em biochar", projeta o agrônomo.

Diversas entidades fizeram o aporte, entre elas o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Atualmente, os laboratórios da Amazonfert funcionam dentro das instalações do Senai do Rio de Janeiro, com vistas a desenvolver o produto até que ele ganhe larga escala, eficiência e um diferencial competitivo em relação a outras biomassas.

Apesar de não haver números precisos sobre a biomassa de açaí, as pesquisas da Amazonfert mostram que o biochar pode permanecer por até 100 anos no solo, já que 65% de sua estrutura é composta de um carbono de difícil degradação. A empresa, que começou produzindo 2 toneladas do biocarvão por mês, deve chegar a 90.000 toneladas mensais ainda neste ano. O produto está à venda em supermercados e casas agrícolas das regiões Norte e Nordeste.

Em 2018, o potencial do produto despertou a curiosidade de cinco pesquisadores do Amazonas. Executada pelo Instituto Federal do Amazonas (Ifam),Campus Manacapuru e Campus Itacoatiara, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa, a pesquisa testou o uso do componente em plantas de milho e feijão. Os autores devem publicar suas conclusões em revistas internacionais neste ano, quando também vão começar os testes em maior escala.

A coordenadora da pesquisa, a professora Criscian Kellen Oliveira, do Ifam de Manacapuru, diz que o biochar já tem validação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). "O carbono capturado na fotossíntese das plantas voltaria à atmosfera no processo de decomposição do resíduo que é descartado inadequadamente. Quando transformamos os rejeitos em biochar, esse carbono, em vez de retornar à atmosfera, passa a fazer parte da estrutura da biomassa", detalha.

Em geral, o rendimento do biochar na pirólise fica entre 20% e 25%, o que significa que cada tonelada de resíduo dá origem a até 250 quilos do produto. "Em nosso trabalho, aplicamos 20 toneladas de biochar por hectare. Esse volume foi suficiente para reduzir a acidez e a toxicidade por alumínio no solo", observa a professora.

O uso do caroço do açaí como matéria-prima pode ajudar a difundir o biochar na Amazônia. Esse bioinsumo é tema de pesquisas há pelo menos 20 anos e tem sido usado também pela indústria de biocombustíveis, além de poder ser feito a partir de outros resíduos, como cascas de café, caroço de algodão e rejeitos da suinocultura. Ainda assim, ele é pouco difundido no Brasil.

"No Amazonas, há comunidades em que o transporte de barco leva até 24 horas. Isso dificulta o acesso a fertilizantes e prejudica principalmente o pequeno produtor", observa a pesquisadora.

Alguns estudos indicam que o uso do biochar em zonas tropicais pode aumentar a produção agrícola em aproximadamente 25%, o que melhora a segurança alimentar. O bioinsumo também pode gerar renda: no mercado internacional, cada tonelada de biochar sai por US$ 170.

Fonte: Globo Rural

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